Jo 10,11-18: Somos pastores e mercenários na Igreja e país divididos

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SOMOS OS PASTORES E OS MERCENÁRIOS DA METÁFORA DO CUIDADO EM JO 10,11-18 E NA IGREJA E NO PAÍS DIVIDIDOS

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje, Jo 10,11-18, é carregado de simbolismos e de uma metáfora muito conhecida de todos nós, a do Bom Pastor. Interessante, vivemos quase todos em cidades. Não conhecemos ovelhas, mas, quando falamos de pastor, algo ressoa dentro de nós como muito familiar. E é nisso que está o poder da metáfora. Ela produz um sentimento coletivo que vem do sentimento e não da razão. Metáfora, substantivo grego, capaz de transferir o sentido real de uma coisa para outra. Eu me lembro sempre da médica oncologista, Dra. Aline Lauda, que cuidou como pastora da minha mãe. Ela dizia: “Dona Luci é uma gatinha mimosa!” Gata minha mãe nunca foi, pois não tinha quatro patas, mas amorosa, dedicada e carinhosa sempre foi. Algumas “ovelhas” até me chamam de “gatinho de Divinópolis”, mas, nesse caso, tenho certeza de que não é uma metáfora. Bom, voltemos à metáfora do pastor. 

Feitos esses esclarecimentos, quero propor duas perguntas: Quem, de fato, pode ser considerado pastor como tal: o bispo, o padre, o papa, a mãe, o pai, o político, o pastor de uma igreja evangélica? Quais atitudes revelam o ser pastor de alguém? Vou procurar responder a essas perguntas com Jo 10,11-18. Primeiro, essa passagem não pode ser lida sem considerar o capítulo 9 e os versículos anteriores, de 1 a 10. No capítulo 9, Jesus havia curado um cego de nascença. Ele não foi aceito pelos fariseus. Jesus se encontra com ele no pátio do templo e se apresenta como sendo a pessoa que havia curado a sua cegueira. O ex-cego professa a sua fé em Jesus como Messias e, portanto, Pastor, assim como era visto o Deus-Pastor de Israel. O messias viria como pastor. Lembra do Sl 22(21): “O Senhor é o meu Pastor!”. Em outras passagens do Segundo Testamento, Jesus é também chamado de Pastor. Depois de, como pastor, fazer com que um cego o pudesse ver como luz, no seu sexto sinal, Jesus, na sequência, diz a si mesmo dois eu sou. “Eu sou a porta das ovelhas” (10,1) e “Eu sou o bom Pastor” (10,11). Outros cinco “Eu sou”, relembrando o Pai, serão ditos ao longo do evangelho de João.

O ex-cego estava no pátio do templo judaico. Em pátios, conforme os costumes judaicos, as ovelhas dormiam juntas. No recolher das ovelhas, cada pastor as chamava e as suas o reconheciam pela voz. No templo de Jerusalém, sete vezes Jesus se revela no evangelho de João, mas não é reconhecido pelos judeus como messias e Filho de Deus. Ele, que havia feito cego ver, dá a vida pelas suas ovelhas e elas o conhecem. Conhecer era um verbo muito caro aos gnósticos, os quais ensinavam que, para obter a salvação, era necessária conhecer a origem de onde viemos, a plenitude de luz. Bom, noutra oportunidade, explicarei quem eram esses gnósticos.

Voltemos ao imaginário da metáfora. Jesus diz que seus opositores são todos mercenários, aqueles que não se importam com as ovelhas, deixando-as à mercê dos lobos vorazes, como os fariseus. Estes vivem por interesses e não pelo cuidado. Jesus fez ainda outra afirmativa: “tenho outras ovelhas de outro redil, devo conduzi-las também”. Eles está se referindo aos samaritanos, um grupo de judeus que não eram aceitos no judaísmo. Lembra do encontro de Jesus com a samaritana? (Jo 4,1-30). Jesus, em João, recolhe a todos na sua missão de Salvador, o que fica evidente com a sua morte na cruz, o pastor que dá a vida por suas ovelhas.

Bom, está na hora de voltarmos às perguntas iniciais. Respondo às duas juntas. Ainda que apliquemos aos personagens citados o título de pastor, muitas vezes eles não agem como tais. Pastor é todo aquele que cuida, doa a sua vida sem interesse, que sente a dor do outro com compaixão, que é um igual, um parceiro, um conhecedor do outro. Eu ousaria dizer que, sem a poesia que o termo carrega, mãe é exemplo perfeito do ser pastor.

Pena que para nós, brasileiros, a imagem de pastor é de alguém que manda. E é por isso que temos a síndrome da inferioridade. Nos submetemos com facilidade a bons pastores, mas também a mercenários travestidos de pastores. Não conseguimos ver o outro como igual, mas sempre como superior.

Porque cuida, o pastor é o que fala a verdade. Trago aqui a saudosa memória de Dom Helder Câmera, o pastor dos pobres, que certa vez disse: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista". Meu caro pastor, estamos vivendo suas palavras na Igreja. Somos o que somos: pastores e mercenários. A Igreja no Brasil está dividida. Aos bispos, reunidos em assembleia, e ao povo brasileiro, o pastor papa Francisco nos pede que deixemos de lado nossas “divisões e desacordos” e que sejamos exemplos de unidade para superar não só o coronavírus, mas também os outros “vírus que infectam a humanidade”. Entendeu a metáfora? Ah, ele também lembrou aos bispos e a nós que “a caridade nos incita a chorar com os que choram e a estender a mão, principalmente aos mais necessitados, para que voltem a sorrir”. A sociedade brasileira está dividida, quebrada em meio aos pastores e lobos mercenários. Não gostaria de terminar com essa triste constatação. Quisera que tudo fosse diferente. A nossa essência é a do cuidado, do ser pastor. Quando a negamos, sofremos individual e coletivamente. Que Deus, o Pastor por excelência, nos ilumine na nossa missão de ser pastores e pastoras sempre!             

 


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Inscreva-se no nosso canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos