Devoção mariana na história

Devoção mariana na história

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM
 
A devoção a Maria, a mãe de Jesus, atravessa séculos de história. Num misto de fé  e esperança, procura-se, no aconchego de uma sublime mãe, a ternura de Deus que se encarnou no meio de nós por meio dela. As pessoas não sabem explicar o motivo, simplesmente afirmam: “Tenho um carinho especial por ela”. Qual sentido desta fé? Porque a tradição oral sobre Maria, conservada nos Evangelhos Apócrifos, é mais rica que a canônica sobre Maria? Qual é a atualidade da fé e dogmas marianos? Recentes pesquisas de textos apócrifos sobre Maria nos revelam e confirmam esta fé.
Nada menos que 13 Evangelhos Apócrifos contam a história de Maria. Os vários testemunhos se complementam para apresentar uma história quase completa da vida de Maria: concepção, nascimento, infância, adolescência, casamento, concepção de Jesus, apostolado, morte e assunção. Ler esta história é uma viagem fascinante ao passado vivo desta mulher de Deus e mulher do povo. Origem de mãe, que as mães carregam no ventre. Desejo de filhos que a conservam no imaginário, porque Mãe ela sempre será.

Concepção, nascimento consagração e casamento de Maria


Maria nasceu de pai e mãe judeus. O seu nascimento foi marcado pela intervenção de Deus na vida de seus pais, Joaquim e Ana. Eles já eram casados há 20 anos e não tinham tido filhos. Joaquim teve a sua oferta rejeitada no templo por não ter dado descendência para Israel. Ele foge para as montanhas. Ana reza e concebe Maria. Joaquim volta das montanhas. Maria é consagrada a Deus e vive por 9 anos no Templo de Jerusalém. Ali ela demonstrou liderança e conservou a virgindade.  
Quando Maria completou 12 anos, os sacerdotes do Templo se encarregaram de encontrar um esposo para ela. José, idoso, viúvo e pai de seis filhos, foi o escolhido. Maria foi levada para Nazaré. Ali, ela sonha com o nascimento do Messias. Durante uma viagem de José a trabalho, Maria se engravida pelo Espírito Santo. José não aceita o fato. Maria foge para a casa da prima, Isabel. José compreende o ocorrido. A inocência de Maria é comprovada. O casal viaja para Belém, para se alistar no recenseamento. Jesus nasce em uma manjedoura, nas proximidades de Belém. Após o seu nascimento, a virgindade de Maria é mantida, segundo os evangelhos apócrifos.  

Maria vive no Egito e educa Jesus


Durante 5 anos, fugindo da perseguição romana, José, Maria e Jesus vivem no Egito. A infância de Jesus é acompanhada por Maria com carinho. Ela o educa, o corrige e percebe que ele era diferente dos outros. É louvada pelos doutores do Templo pela sabedoria do menino, mas também se preocupa com a chegada da sua vida adulta.

Maria participa da vida publica de Jesus


Quando José morre, Maria lamenta profundamente. Chegada o tempo da vida pública de Jesus, tudo começa com o milagre das Bodas de Caná. Maria tem um papel importante no início da vida pública de Jesus. Ela o incentiva a cumprir o seu papel. Chegado o momento da Paixão, mãe e filho se despedem e choram, mas Maria não o abandona. Jesus morre na cruz e Maria vai ao túmulo e se encontra por primeiro com Jesus e lhe diz: “Ressuscitaste, meu Filho. Feliz ressurreição!”

 Morte e Assunção de Maria 


Dois anos após a morte de Jesus, ele aparece para ela e lhe anuncia que ela morreria em três dias. Jesus lhe entrega uma palma. Maria volta para a sua casa. Os apóstolos se reúnem na sua casa e se colocam em vigília. Jesus vem com os anjos e faz com que Maria durma. O seu corpo é levado para um sepulcro indicado por Jesus. Novamente, Jesus volta e leva Maria para o céu, onde, ressuscitada, é coroada Rainha do Céu por Jesus.

A atualidade da história de Maria 


Muitos fatos da vida de Maria foram transformados em dogmas de fé. Por mais polêmica que seja, a história de Maria nos evoca o ser mãe. Nos Evangelhos Apócrifos, é ressaltada a sua liderança apostólica e seu papel importante na vida de Jesus.
A Assunção de Maria é o mais apócrifo dos dogmas. Ele simplesmente quer nos dizer que, em Maria, Deus antecipou o que vai acontecer com todos os mortais. Isto é sinal de esperança.
Polêmica é a questão da virgindade de Maria. Esta fé foi firmada pela Igreja em 553. Maria, apresentada como virgem, cria uma imagem de mulher inacessível para todas as mulheres. Compreender a virgindade de Maria só tem sentido se for simbólica, assim como os textos de Gênesis 1-11. Adão e Eva não existiram. Adão e Eva somos todos nós, quando rompemos a aliança com Deus. A virgindade de Maria está para além dela mesma. Em Maria, no nascimento de Jesus, a humanidade retorna a Deus, mesmo quando continuamos impuros e fora do caminho. O desejo de cada ser humano é ser íntegro. Sendo isto tão difícil, em relação à concepção e o nascimento virginal de Maria, resta-nos o simbólico e o utópico, a fragilidade da vida e a sedução de Deus, o irreal tornar-se real. Em Deus tudo é possível. A virgindade não é carnal, mas existencial. Para a fé, mesmo que Maria não tivesse sido virgem antes, durante e depois do parto, ela deveria sê-lo, porque ela é modelo.
A história de Maria em alguns textos apócrifos é ressalta como parte intrínseca da história de Israel. O seu nascimento parece já previsto por Deus, em vista do Messias. Os seus pais são descendentes de Davi. Ela se casa conforme a lei judaica. Para o Judaísmo, Raquel é a mãe por excelência de Israel. No cristianismo, Maria cumpre o papel de Raquel. Lamentável, no entanto, é que encontramos anti-semitismos nos Evangelhos Apócrifos de Maria.
Muitas tradições religiosas em relação à Maria, guardadas na memória popular e em dogmas de fé, têm suas origens nos apócrifos, assim como: a palma e o véu de Nossa Senhora; as roupas que ela confeccionou para usar no dia de sua morte; sua assunção ao céu; a consagração à Maria e de Maria; os títulos que Maria recebeu na ladainha dedicada a ela; os nomes de seu pai e de sua mãe; a visita que ela e Jesus receberam dos magos; o parto em uma manjedoura, etc. A nossa devoção mariana é mais apócrifa que canônica.
Maria exerce um papel importante de liderança entre os primeiros cristãos e apóstolos. Ela os enviou em missão. Todos presenciaram a sua morte e assunção. Ela não era qualquer mulher. Era, por assim dizer, a Senhora dos apóstolos. Jesus mesmo a encarregou de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição. Pena que a Igreja insistiu muito em sua virgindade e maternidade, em detrimento de seu apostolado.
     
(Artigo inspirado no livro: Maria, mãe e apóstola de seu Filho, nos Evangelhos Apócrifos, Vozes, e publicado no Jornal Estado de Minas, caderno Pensar, 19/08/06).