JORNAL O TEMPO

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Apócrifos e aberrantes
 
Ana Elizabeth Diniz
Especial para O TEMPO
Os sete primeiros séculos do cristianismo, interpretados à luz dos 88 apócrifos do Segundo Testamento, são o mote do livro "Apócrifos Aberrantes, Complementares e Cristianismos Alternativos - Poder e Heresias!", que está sendo lançado pelo Frei Jacir de Freitas, mestre em ciências bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma. O livro registra outros modos aberrantes de pensar do cristianismo: a infância de Jesus, a liturgia sexual, a história de Maria Madalena, a amada de Jesus, mas não a prostituta.

Como entender o poder e heresias na formação do cristianismo?

Primeiramente é importante salientar que o cristianismo conviveu até o século terceiro com diversas teorias e teologias, num misto de poder e heresia. O cristianismo apócrifo gnóstico, principal opositor daquele que se tornou hegemônico, era, assim como esse, multiforme, mas se enfraqueceu na diversidade e foi vencido. No cristianismo hegemônico, a trajetória foi diversa. Ele conseguiu agregar vários modos de pensar teológico, até mesmo apócrifo, num único ramo que se tornou oficial e hegemônico, no quarto século.

Os outros foram subjugados a ele, expulsos e cunhados de heréticos, pois pensavam diferente do que fora estabelecido como verdadeiro. A história foi reescrita pelo grupo vitorioso, de modo que parecesse que assim já era desde os tempos apostólicos. O cristianismo vencedor das disputas teológicas foi aquele que firmou raízes no Império Romano e chegou até nós. Por isso, ele é também chamado de romano e católico, por ter sido anunciado a todo o mundo, com base nos ensinamentos dos apóstolos, sobretudo Pedro e Paulo, que, mais tarde foram proclamados padroeiros de Roma, para legitimar o poder do Império Romano, agora cristianizado.


Por que o cristianismo hegemônico criou uma igreja e um bispo homem, eliminando o poder de direção institucional das mulheres?

Entre alguns grupos gnósticos, as mulheres cristãs tinham papel fundamental. Elas eram mestras e apóstolos. Tecla pregou a palavra de Deus. As seguidoras do gnóstico Marcos profetizavam e até exerciam a função sacerdotal nas celebrações eucarísticas. Marcião ordenou mulheres para os cargos de padre e bispo. Jesus confirma a liderança de Madalena entre os apóstolos. Ela não foi prostituta, mas a mulher que Jesus tanto amou. Os montanistas consideravam como fundadoras de seu movimento profético Prisca e Maximila. As mulheres montanistas também exerciam ministérios eclesiásticos.

Tertuliano escreveu referindo-se às mulheres gnósticas: "Como são atrevidas! Carecem de modéstia e têm a ousadia de ensinar, de discutir, exorcizar, de curar e até de batizar". "Não é permitido a nenhuma mulher falar na igreja, nem é permitido que ensine, ou que batize, ou que ofereça a eucaristia, ou que pretenda para si uma parte de qualquer atribuição masculina - para não se falar em qualquer cargo sacerdotal". Por outro lado, havia grupos gnósticos que defendiam a virgindade e vida ascética para as mulheres, de modo que a natureza humana não fosse propagada e, assim, a salvação era antecipada.

Quando e por que essa liderança feminina foi banida?

Isso aconteceu já no final do século II. A partir daí, quem concedesse poder às mulheres seria considerado herético. Os gnósticos, ao propor uma igualdade entre homem e mulher, queriam que isso fosse aplicado à ordem social. O cristianismo que se tornou hegemônico, ao impor a supremacia do homem sobre a mulher, justificou o seu pensamento com a visão masculina de Deus. Mais tarde, para o Império Romano, a posição discriminatória do cristianismo em relação à mulher foi positiva, pois ela veio ao encontro dos masculinistas e ricos que combatiam a proeminência das mulheres no Império, que, por serem maioria naquele momento, começavam a se envolver nos negócios e na vida social.


Como explicar essa luta pelo poder dentro de uma instituição religiosa?

A questão do poder é inerente a qualquer organização de humanos. A questão não é o poder, mas o modo como lidamos com ele. Jesus exerceu o seu poder de modo peculiar. A descoberta dos escritos apócrifos, sobretudo os gnósticos, é o grande achado da atualidade, pois eles nos revelam o outro lado da moeda na luta desenfreada pelo poder, nos primórdios do cristianismo. Poder? Que poder? Poder de direcionar a fé, de organizar uma instituição hierárquica capaz de salvaguardar a essência da fé em Jesus Cristo, em um só credo e em uma igreja universal. E foi por causa dessa organização institucional do cristianismo que ele sobreviveu e marcou a humanidade em antes e depois de Cristo.

O que esses textos têm de aberrantes?

Um apócrifo é aberrante porque ele exagera na descrição de fatos sobre Jesus e seus seguidores ou discorda totalmente da narrativa canônica. Por outro lado, o narrador pode até mesmo considerar verdadeira a informação, mas exagera ainda mais para mostrar o quanto é importante aquele fato para a fé. Nessa tarefa, muitas comunidades inventaram ou criaram informações inverossímeis. Temos muitas histórias aberrantes da infância do menino Jesus. Ele, por exemplo, usou de seus poderes divinos para matar adultos e crianças que o incomodavam nas suas brincadeiras pueris; era um mal-educado, que não respeitava as autoridades; era imaturo, tinha poderes de super-herói; não precisou estudar, sabia ler e ensinar, mesmo não sendo alfabetizado.

Pilatos, Herodes e o Império Romano se converteram ao cristianismo, já no primeiro século do cristianismo. Jesus, o Messias, se vinga dos judeus, entregando as chaves da cidade de Jerusalém para o Império Romano, de modo que ele possa destruí-la com seus habitantes. Considerando isoladamente um apócrifo aberrante, logo diríamos: Isso é um exagero! Jesus menino matava? Não, eu não acredito nisso! E não deve acreditar mesmo. Essa informação jamais poderia ser inspirada e, tampouco, deve ser levada em consideração na vivência de nossa fé. Pode até ser lida como literatura. São histórias de ternura e travessura do menino Jesus. Estou preparando um novo livro com esse título. Pena que a Igreja acabou classificando todos os apócrifos de aberrantes.


O que os textos apócrifos falam sobre a liturgia sexual?

Para eles, o ser humano deve pedir a morte, de modo que ele possa se libertar do corpo e de seu ardor sexual. Nada de relação sexual e geração de outros seres imperfeitos. Os carpocráticos realizavam troca conjugal litúrgica com a intenção de mostrar que tudo pertencia a Deus e que Ele devia ser adorado desse modo. Para esse grupo, a prática devassa do corpo e a reencarnação são caminhos de salvação, pois através delas o corpo se purifica. Ascetismo, negação da sexualidade e consequente virgindade conduzem à salvação, pois nos levam ao retorno original da criação, sem diferença de gênero. Os gnósticos fibionitas realizavam banquetes orgiásticos numa liturgia sexual. Bom, o modo como realizam essa curiosa liturgia sexual, é melhor ler no livro.