Caim devia ter matado Abel! Gn 4,1-16

Análise de Gn 4,1-16 na perspectiva da violência nas origens

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

 

Resumo

 

O estudo que apresentamos quer ser uma análise retórica de Gn 4,1-16 na perspectiva da violência nas origens, bem como do valor simbólico que evocam os nomes de Caim e Abel. É importante analisá-los como agricultor e pastor, mas também como protótipos do agir humano luta pela sobrevivência.

 

Introdução

 

Além de representarem as profissões de Agricultor, pastor e ferreiro, Caim e Abel são todos e qualquer ser humano na difícil tarefa de procurar um relacionamento que não seja o do interesse, da inveja e do ciúme. Enfim, que não seja aquele que produza violência. E violência gera violência. Essa máxima conhecida de todos. Não basta revidar um ataque terrorista com outro ataque. Com certeza, a resposta será imediata. Em nossos dias, cresce cada vez mais a violência em seus mais variados modos: corporal, moral, econômica, social, política, religiosa.

 

A violência hoje se chama droga, ataque terrorista, corrupção política, favela, etc. A classe média brasileira nunca gastou tanto em sistema de segurança, como se isto fosse a solução para o problema da violência. Enquanto não houver justiça social a famosa frase de Plauto continuará a imperar: “Homo homini lupus” (O Homem é o lobo do homem). Infelizmente, o sonho de uma sociedade nova, de um ser humano novo, parece cada vez mais distante. O que não nos impede e perguntar pela origem da violência e buscar na Bíblia textos iluminadores do tema. E será esse o fio condutor de nossa análise de Caim e Abel, em Gn 4, 1-16 (Nota 1)

 

1 - Qual é a origem da violência?

 

A origem da violência está em cada um de nós e na relação que mantemos com o sagrado. O uso arbitrário do poder origina violência, que, por sua vez, gera injustiça, insegurança e a afastamento de Deus.

 

O antropólogo francês, René Gerard, famoso pelo seu livro: A violência e o Sagrado, publicado pela primeira vez em 1972, afirma que (Nota 2) a violência está na base da sociedade e da cultura, sob a forma dissimulada do bode expiatório. Cada um deseja o que o outro deseja, o que desencadeia uma rivalidade constante e ameaçadora, que se identifica com o sagrado, potência sobrenatural opressora, externa ao ser humano, verso o qual a humanidade tem sempre um sentimento de atração e repulsa ao mesmo tempo.

 

Por isso, o bode expiatório, sacrificado em um ritual, serve para apaziguar e controlar a violência. Sacrifica-se um e todos ficam contentes. A culpa fica assim atribuída ao bode. E a violência se apazigua momentaneamente. George Busch afirmou recentemente que o seu povo não vai dormir em paz enquanto não encontrar e destruir os culpados do atentado aos USA. Aqui estamos diante de um bode expiatório ao inverso. Desse modo, a violência nunca vai chagar ao fim.

 

2 - A violência na Bíblia

 

As comunidades que escreveram os textos Bíblicos nos legaram duas narrações sobre a criação (Gn 1, 1-2,41a e Gn 2, 4b-24) e dois relatos sobre a violência nas origens (Gn 3, 1-24 e Gn 4, 1-16). Essa oposição põe em evidência o binômio bem e mal presente no início da humanidade. Tudo isto, é claro, na perspectiva de reflexão teológica sobre a vida e o proceder de quem produziu esses textos. Adão, Eva, Caim e Abel nunca existiram como indivíduos.

 

O primeiro texto sobre a violência (Gn 3,1-24) deixa claro que essa consiste em abdicar a paternidade/maternidade divina. O ser humano parece ter chegado ao cúmulo de não mais se reconhecer como filho de Deus.

 

O segundo texto sobre a violência não é a conseqüência do “pecado original” dos pais, como quis a interpretação tradicional desse texto, mas o atestado de óbito da humanidade que se autodestrói. Um irmão mata o seu próprio irmão! A paternidade/maternidade divina está violentada. Analisemos exegeticamente essa passagem. (Nota 3)

 

3 – O texto de Gn 4,1-16 e sua estrutura literária

 

Vamos aplicar ao texto de Gn 4, 1-16 o método exegético de interpretação de um texto bíblico chamado de análise retórica. O procedimento consiste, primeiramente, em delimitar estrutura literária do texto em questão, na sua relação como os textos anteriores e no interno dele mesmo. De posse dessa delimitação é inicia-se a análise exegético-teológica.

 

O texto de Gn 4,1-16 pode ser delimitado por termos iniciais ou finais, isto é, substantivos ou frases que contornam o texto distinguindo-o do texto anterior e posterior. Esses termos são também chamados de “motivos literários” que possibilitam a identificação de uma passagem ou perícope bíblica.

 

Os termos iniciais são:

 

4, 1: “O homem conheceu Eva”...

 

4, 17: “Caim conheceu sua mulher”...

Os termos finais são:

 

3, 24: “Ele baniu o homem e o colocou diante do jardim do Éden”...

 

4, 16: “Caim se afastou da presença do Senhor e habitou na terra de Nod, a leste de Éden”...

Além dos termos acima apresentados, encontramos expressões no início e fim de Gn 4, 1-16 que explicando o sentido de um nome o fazendo contraste.

 

A explicação de nome aparece em:

 

4, 1: aparece o nome “Caim”, em hebraico, Qaîn, o qual se relaciona com o “adquiri”, em hebraico, qanîtî, que vem logo a seguir.

 

4, 16: aparece o nome “Nod”, em hebraico, nôd, que por sua vez, se liga à ordem dada a Caim por Deus, no versículo 14: “ser um errante”, em hebraico, nad. Morar na “terra de Nod” é já cumprir a sina de ser um errante.

 

O contraste entre expressões aparece em:

 

4, 1: Eva expressa a sua alegria ao conceber Caim dizendo: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor”.

 

4, 16: O fim da história de Caim se resume em: “E Caim se afastou da presença do Senhor”.

 

Os motivos de conteúdo são também evidentes em Gn 4,1-16. Aparecem três temas distintos e, ao mesmo tempo, relacionados em uma seqüência teológica lógica. Vejamo-los:

 

I – 4, 1-5a: A vida de dois irmãos diferentes

 

II – 4, 5b-7: A tentação de Caim

 

III - 4, 8-16: O fratricídio e suas conseqüências

 

O procedimento de análise de Gn 4,1-17 seguirá as partes acima apresentadas.

 

4. Gn 4, 1-5a: A vida de dois irmãos diferentes

 

Essa primeira parte da passagem em questão delineia o perfil de Caim e Abel, ora como objetos, ora como sujeitos de ações. Desse modo, podemos também dividir Gn 4, 1-5a em três partes, a saber:

 

4, 1- 2a : Caim e Abel como objetos do gerar dos pais.

 

4, 2b - 4a: Caim e Abel como sujeitos

Abel: - pastorear de ovelhas;

- oferecer primícias e gorduras do seu rebanho ao Senhor.

Caim: - cultivar a terra

- oferecer produtos do solo em oferenda ao Senhor.

 

4, 4b-5a: Caim e Abel são objetos da eleição divina. O Senhor se agrada das ofertas de Abel e rejeitas as de Caim.

 

E como não bastasse, o nascimento dos irmãos são marcados por diferenças fundamentais.

 

a) O nascimento de Caim

 

O texto diz: “O homem conheceu Eva, sua mulher. Ela engravidou, gerou Caim e disse: Adquiri um homem, com a ajuda do Senhor” (v1).

 

No hebraico, o substantivo qaîn significa ferreiro. Ele deriva da raiz verbal que, por sua vez significa comprar, obter, fundar, criar, procriar. Daí a afirmação “adquiri um homem” e não “um filho”. Observamos nitidamente uma ambigüidade no texto: Eva procriou um “homem-filho” e obteve um “homem-marido”. O texto parece a ressaltar que, embora Gn 2,23 tivesse dito que a “mulher foi levada ao homem”, o homem (Caim) provém da mulher e não contrário (4, 1). Em todo caso, o texto valoriza o nascimento de Caim-homem. Isto significa que Caim seria um herói ou um semideus? Não sabemos.

 

Eva, ao louvar o nascimento de Caim, expressa toda a sua alegria e gratidão pelo ocorrido. Nisso está a esperança promissora do filho ora gerado. No entanto, esse não será o futuro de Caim. Ele não será abençoado. O insucesso será a sua sina. A promessa de esperança não se realiza. Deus age em favor de Eva e contra Caim.

 

b) O nascimento de Abel

 

O texto diz: “Ela gerou ainda o irmão dele, Abel” (v.2a).

 

No hebraico hêbêl significa, vento, sopro, hálito, algo efêmero, vazio, insignificante, fugaz, ilusão, luto, lamento, choro, desengano. Abel é o representante da tragédia humana, na sua fugacidade. O livro do Eclesiastes, quando diz que “tudo é vaidade das vaidades” (Ecl 1,1) usa o substantivo habel. Tudo é fumaça, tudo é passageiro. Abel é símbolo de todas as frustrações do ser humano: luto, dor, fraqueza.

 

Por isso, o nome dado por Eva ao seu segundo filho quer mostrar a fragilidade do ser humano, já no início da criação, não obstante o triunfo magistral do seu antecessor, Caim. Abel representa também todo Adão, ou seja, aquele que veio do pó da terra. Assim, Eva dá à luz a Abel, aquele que “nasceu somente para morrer”. Não há o que fazer. A violência gera sempre um Abel, vários abéis. Sem violência todo e qualquer Abel deixará de existir. E é isso que o conto/mito de Abel e Caim nos mostrar.

 

c) Os dois irmãos

 

O texto afirma antes do anuncio do nome Abel que ele é irmão de Caim. O substantivo na passagem em questão nada menos que sete vezes (vv. 2a; 8a; 8b; 9a; 9b; 10; 11), o que nos indica que este é um tema essencial. A narração é, de fato, sobre dois irmãos que se tornam rivais. Caim é o primogênito.

 

No mundo semita, ser primogênito significa poder e privilégio na herança e bênção. E nisso também está origem da violência nas origens. A primogenitura de Caim lhe daria a certeza do sucesso, o que vem reforçado pelo nascimento do irmão. A desilusão é a matriz da violência posterior. Caim será sempre o protótipo de todo ser humano que luta pelos seus direitos roubados. Mesmo que isso gere violência.

 

d) A diferença cultural

 

O texto diz: “Abel apascentava as ovelhas, Caim cultivava o solo” (v.2b).

 

A diferença cultural aparece logo no início do relato: Abel é o pastor nômade de ovelhas e Caim, o agricultor sedentário. Caim, matando o nômade, recebe como castigo a aplicação da lei do talião, deve tornar-se “nômade” errante. A comunidade que produziu esse texto, não estaria querendo explicar o conflito vivido por ela? O povo da roça estava sendo expulso para as cidades. As cidades eram símbolos de idolatria. No deserto, a vida não era assim. E nessa relação estava a violência. Bastava remetê-la às origens. E foi o que a comunidade desse texto fez.

 

Caim seguiu a profissão do pai Adão, ou melhor a sua condenação: a de cultivara terra. Por outro lado, a história da salvação nos mostra que os pastores Abraão, Isaac e Jacó foram os escolhidos.

 

e) A diferença no culto

 

O texto diz: “No fim da estação, Caim trouxe ao Senhor uma oferenda de frutos da terra; também Abel trouxe primícias dos seus animais e a gordura deles” (v.3-4a).

 

A referência “fim da estação” denota o tempo esperado e necessário para que o trabalho dos dois irmãos dê os primeiros frutos, seja oriundo da terra, seja dos animais. E oferta parece normal para a cultura que eles representam no relato. Uma oferta não tem privilégio sobre a outra. A diferença aqui se baseia, de fato, no produto oferecido. Deus não teria como se agradar de uma, em detrimento da outra. Mas não é isso que ocorre. É o que veremos a seguir.

 

f) A diferença no sucesso

O texto diz: “O Senhor voltou seu olhar para Abel e sua oferta , mas de Caim e da oferenda que trouxera desviou o olhar” (v. 4b-5a).

 

Desviar o olhar significa dizer que Deus não se agradou de Caim e nem de sua oferta. No Primeiro Testamento, “voltar o olhar” (sh‘h) aparece 10 vezes e não está ligado ao fato de aceitar ou não uma oferta. Não estaria esse verbo, no texto em questão, colocado de forma estratégica a fazer o leitor perceber o que vem dito a seguir: Caim passou a andar com o rosto abatido, olhando para a terra, isto é, caído. E nisso está uma diferença evidente entre os dois irmãos. A língua hebraica tem um recurso literário chamado quiasmo que nos ajuda a entender esse contraste querido na narração. Uma idéia é colocada em relação à outra na forma de cruz. No texto ficou assim:

 

a: O Senhor voltou seu olhar b: para Abel e sua oferta,

 

b: mas de Caim e da oferenda a’: desviou o olhar.

 

Estamos diante de um texto enigmático. Por que Deus age de maneira diferente com Abel e em relação a Caim? Quais são os motivos para aceitar uma oferta e rejeitar a outra? Não estaria Deus mesmo originando a violência nas origens? Qual era o objetivo da comunidade que produziu essa história de dois irmãos rivais? E por que eles se tornaram rivais? Essas perguntas não são fáceis de serem respondidas. O fato de o conto imaginar dois irmãos diferentes, equivale colocar a questão da desigualdade e constatar o surgir da violência e inveja já nas origens.

 

O que também não de tudo verdade dizer que entre eles só existem diversidades. O ser irmão, a igualdade entre eles faz com que um grite: “eu estou privado daquilo que o outro tem”. Esta constatação é insuportável e daí nasce a violência. E onde, então, estaria a culpa? Em Abel? Em Deus mesmo? Em Caim? A tradição encontrou muitas justificativas para colocar a culpa em Caim. Ele teria nascido da relação entre Eva e a serpente, conta um midraxe rabínico. Caim era um avarento, diz o historiador Flávio Josefo. A oferta de Caim veio da terra maldita anteriormente por Deus e, por isso, não poderia ser aceita.

 

Colocar a culpa em Deus pode ser também possível. A literatura apocalíptica mostra que o bem e o mal têm a origem em Deus. Ele perdoa e castiga. Não foi assim que aconteceu com a criação? Adão e Eva, isto é, os seres humanos, foram criados para o bem, mas acabaram fazendo do mal. Bem e mal estão dentro de cada um de nós. E nós somos imagem e semelhança de Deus.

 

Nessa história toda, sempre tem um tentador e um que é tentado. Imaginemos que esse seja Caim.

 

5 - Gn 4, 5b-7: A tentação de Caim

 

O texto pode ser dividido em duas partes: v. 5b e vv.6-7.

 

O texto da primeira parte diz: “Caim irritou-se muito com isto, e seu semblante ficou abatido”.

 

Caim está irritado, se sente desfraldado, sua situação é injusta e insuportável. Com isso, o seu semblante só podia ficar abatido. Tristeza misturada com ira o dominou. E que não fica assim, ao sentir-se vilipendiado, ainda mais por Deus. Nesse sentido, é normal Caim sentir-se movido a fazer o mal, isto é, ser tentado a agir de modo errado. Essa tentação está dentro de cada um de nós. Por pior que haja alguém, ele quer sempre eliminar aquilo que não o impede de ser.

 

O batido não nasce bandido. Ele é feito bandido. O terrorista é gerado por sistemas iníquos. Afirmou o líder do movimento terrorista Taliban: “Saibam Israel e seu comparsa EUA que nós somos fruto do mal que ele nos faz”. E não por menos, esse exército de terroristas suicidas aprende as lições de casa desfilando sobre as bandeiras desses dois países. Violência gera violência.

 

O texto da segunda parte diz: “O Senhor disse a Caim: Por que te irritas? E por que o teu rosto está abatido? Não é assim: se fizeres o bem, o levantarás, e se não fizeres o bem, o pecado jaz à tua porta como um animal acuado que te deseja? Mas tu, domina-o”.

 

O texto mostra um diálogo imaginário entre Deus e Caim, o qual é, na verdade, a voz interior que está dentro de cada um de nós. É a comunidade do texto procurando resposta para essa situação angustiante que nos assola. A pergunta desconcertante ou taxativa de Deus coloca Caim entre dois caminhos do bem:

 

a) “Se tu fazes o bem, Deus levantará a sua cabeça, agirá em seu favor”. Caim deve agir com justiça, isto é, fazer o bem, e esperar pela aça, também justa, de Deus. E Caim pode agir assim. O fato de Deus não ter aceitado a oferta de Caim, não significa necessariamente que Ele o rejeitou. Parece que a comunidade do texto esteja querendo justificar em Deus um fato que pode ocorrer com muitos de nós: tudo vai mal, nada dá certo. Mas, não é essa a nossa condição própria de humanos? Não é resistência acreditar que tudo pode mudar? Deus intervirá em nosso favor. Essa é certeza que precisamos acreditar. Basta fazer o bem, o resto fica por conta de Deus.

 

 

b) “Se tu fazes o bem, podes levantar a cabeça. O fazer o bem provoca, automaticamente, alegria no rosto e cabeça levantada”. A boa ação de Caim fará dele um ser humano bom e alegre. A tristeza no seu rosto é o sinal evidente que ele está agindo mal.

 

O agir mal de alguém se transforma em um animal agachado à porta de nossas casas esperando para dar o bote. O animal acuado é o símbolo do perigo, da tentação que deve ser dominada. Ele mora dentro de cada um de nós. E está sempre pronto para atacar. Assim também ocorreu com a serpente e a Eva. Ou a Eva/serpente/Adão? Basta que eu deseje o que outro tem ou me sinta lesado nos meus direitos, para que o animal entre em ação.

 

E por mais violento que seja o animal, o mal será maior. Após o famoso ataque terrorista aos USA, representante mor do neoliberalismo, esse “leão” ficou enfurecido. E quem não tem medo de um leão enfurecido? Não é ele “o rei da selva”? Por outro lado, a decisão de agir em favor do bem ou do mal cabe a cada um de nós. Nisso está o sagrado mistério da liberdade. Nisso está a morte e a vida de outrem e de mim mesmo.

 

6 – Gn 4, 8-16: O fratricídio e suas conseqüências

 

A terceira parte do nosso conto pode ser dividido em três partes: v. 8; 9-15a e 15b-16. O diálogo entre Deus e Caim está no centro. Tendo as ações de Caim no início e no fim do relato.

 

A primeira parte diz respeito às ações de Caim. O texto afirma: “Caim falou a seu irmão Abel: ‘Saiamos’ e, quando foram ao campo, Caim atacou seu irmão Abel e o matou”.

 

O conto/mito narra solenemente o “primeiro” assassinato realizado entre os seres humanos. E como ele foi violento. Chegou a ser um fratricídio, um irmão matou o seu próprio irmão. A bem da verdade, esse não foi o primeiro assassinato, ele foi, sim, o modo encontrado para explicar os tantos assassinatos, a violência instaurada e institucionalizada na época em que o texto foi escrito. A resistência à violência implicava também encontrar uma explicação originária para ela.

 

O violento “Caim” escolhe o campo, lugar solitário e sem testemunhas, para realizar a violência. A injustiça é feita às escondidas e o malvado procura esconder as pegadas de sua violência.

 

Imagine, trazendo para os nossos, a atualidade desse texto: os terroristas que atacaram as Torres de Nova York e o Pentágono planejaram longos anos a fio o atentado. Estudaram nas escolas do inimigo. Escolheram vôos que saiam simultaneamente. Um terrorista acreditou que o outro não iria traí-lo. E CIA nenhuma, por mais dinheiro que usasse para descobrir planos terroristas, não foi capaz de descobrir tamanha ação.

 

A segunda parte (vv. 9-15a) diz respeito ao diálogo ente e Caim. O texto relata: “O Senhor disse a Caim: Onde está o teu irmão Abel? Não sei, respondeu ele. Sou eu o guarda de meu irmão? 10 Que fizeste?Ele retrucou. A voz do sangue• do teu irmão clama do solo a mim. 11 És agora amaldiçoado, banido do solo que abriu a boca para recolher da tua mão o sangue do teu irmão.12 Quando cultivares o solo, ele não te dará mais a sua força• . Serás errante e vagabundo sobre a terra. 13 Caim disse ao Senhor: Meu crime é pesado demais para carregar. 14 Se hoje me expulsas da extensão deste solo, serei expulso da tua face, serei errante e vagabundo sobre a terra, e todo aquele que me encontrar me matará. 15 O Senhor lhe disse: Pois bem• ! Se matarem Caim• , ele será vingado sete vezes.”

 

O relato, nesses versículos, é marcado pelo diálogo entre Deus e o Caim. Deus fala no início, meio e fim. O esquema assim se revela:

 

Deus (v.9a) acusa Caim

 

Caim (9b) responde com uma mentira

 

Deus (10-12) faz uma réplica com uma pergunta e dá a sentença

 

Caim (13-14) retoma a palavra

 

Deus (15a) sentencia quem matar Caim

 

Deus acusa Caim (v. 9a) perguntado pelo paradeiro do irmão: “Onde está o teu irmão Abel?” A acusação está em forma de interrogação. O mesmo ocorre com Adão e Eva. Esse procedimento tem como finalidade facilitar a confissão do culpado.

 

Caim responde com uma mentira (v. 9b) afirmando: “Não sei. Acaso sou eu guarda de meu irmão”. A pergunta retórica quer quase dizer: eu sou o culpado, devia cuidar de Abel (o débil), mas não o fiz. Nisso está a ironia de Caim. Quem cuida de ovelhas (Abel) que também se cuide. Caim não foi capaz de reconhecer a culpa.

 

Deus faz uma réplica com uma pergunta e dá a sentença (vv.10-12) condenatória: o culpado é maldito e expulso da terra fértil que abriu a boca para acolher o sangue do irmão. O sangue do crime está sobre a terra. Quer evidência maior da injustiça cometida. Contra a prova de um crime, não se pode nega-lo. Dt 21, 1-9 fala de um rito que deveria realizado para livrar-se o sangue de alguém fosse assassinado no campo. Isso impediria a reivindicação da justiça por outrem.

 

No nosso texto, é o próprio sangue derramado que é utilizado para anunciar a sanção, a sentença ao culpado Caim. E a sentença vem em forma de maldição. Em Gn 3, 14-17 a maldição é lançada sobre a serpente e a terra. Aqui, a maldição é sobre o ser humano, na pessoa imaginária chamada de Caim. A semente de violência lançada pelo lavrador produz maldição sobre ele mesmo e a terra que lhe concede vida. Matar Abel é o mesmo que matar a terra que, assim como Abel, é um sopro de vida. Caim (ser humano) perde o irmão e os frutos da terra. Caim (ser humano) é um exilado em sua própria terra.

 

Ele, como os pais, será um errante sobre a terra. Caim não é condenado à morte, como previa a Lei do Talião (olho por olho, dente por dente). Deus age como Pai e não como juiz. A sua ação de castigar tem a função de salvar o culpado, através do castigo. O exílio devia suscitar em Caim o desejo eterno de reparar o erro cometido. Cada um que lesse ou ouvisse contar essa história deveria se sentir qual outro Caim exilado, mas cheio de esperança de encontrar um tempo de paz. Da mesma forma, o a comunidade do texto quer mostrar que lei deve recuperar o culpado e não simplesmente condená-lo.

 

Caim retoma a palavra (vv.13-14) afirmando que a sua culpa era grande demais. A certeza do revide lhe parecia claro. Quem por primeiro lhe encontrasse o mataria. O texto hebraico do v. 13 pode ser traduzido nos seguintes modos:

 

a) Minha culpa é grande demais para suportá-la;

 

b) Minha culpa é grande demais para que Deus a perdoe;

 

c) Meu castigo é grande demais para poder suportá-lo;

 

d) Minha culpa é grande demais para poder suportá-la, mas tu podes perdoá-la.

 

Das traduções acima, o sujeito do verbo suportar ou perdoar pode ser Caim ou Deus. (Nota 4 ) Se o sujeito for Caim: ele (Caim) se sente incapaz de assumir a própria culpa e suas conseqüências e, portanto, pede clemência a Deus. Se o sujeito for Deus: ele (Deus), segundo a opinião de Caim, não poderá perdoar o seu crime, pois esse é grave demais. A conseqüência do “não perdão” é o desespero total de Caim. O ser fugitivo é conseqüência de um pecado irreparável.

 

Melhor seria considerar o sujeito de modo indeterminado e traduzir o v. 13: “Minha culpa é por demais grave para ser suportada, seja por mim, seja por Deus, seja para quem me encontre”.

 

Conseqüência dessa tradução:

 

1) A gravidade da culpa expõe Caim à vingança;

 

2) Caim afirma que o pecado exige o castigo;

 

3) O castigo produz violência. O violento é obrigado a escapar sempre, pois será sempre um ameaçado por todos. Quem assassina será assassinado.

 

4) Nem mesmo a pena suavizada, no caso o exílio, impede a violência;

 

5) A vontade de Deus em salvar o violento deixa de ser eficaz;

 

6) O fato de o culpado ser abandonado como vagabundo e indefeso, ele é entregue nas mãos de um potencial assassino, um vingador de sangue.

 

Deus sentencia quem matar Caim (15a) afirmando que “Quem matar Caim será vingado sete vezes”. Ser vingado sete vezes significa simbolicamente a totalidade. Quem matar Caim, isto é, quem responder a violência com violência ainda maior, será punido sem medida.

A terceira parte do relato (vv.15b-16) diz respeito às ações de Deus e Caim. Deus, com um gesto enigmático, coloca um sinal sobre Caim e esse passa a ser um medroso, um ameaçado. O culpado nunca consegue se ver livre da culpa. E ele deve assumir o seu papel. A violência instaura o terror. E por mais paradoxal que seja, o medo de Caim, simbolizado pelo sinal, fará com que a vida permaneça sobre a terra.

 

A Caim, ao ser humano, só resta fugir da presença de Deus e ir morar na terra de Nod, onde vivem os errantes, o sem pátria. Até que um dia o Éden volte a ser uma realidade na sua vida. A esperança permanece. A violência deixará de existir. É preciso sonhar sempre. Só quando houver justiça social é que não mais haverá violência, ataques terroristas.

 

7 - Caim fez bem ao matar Abel!

 

O estudo que fizemos até o momento deixou claro que a interpretação das personagens Caim e Abel foi marcadamente acentuada pelo papel que eles exerceram como Agricultor e pastor. No entanto, se faz necessário interpretá-los também como ferreiro e vento.

 

a) Caim: ferreiro, imagem da violência e da morte

Caim significa ferreiro, profissão que surgiu na lá pelo ano 1200 a.E.C. Como o povo via o ferreiro na antiguidade? “O ferreiro gozava duma fama fora do comum em toda a antiguidade. Boa e má. Era respeitado, venerado e também temido e odiado.

Tudo isso devido à sua profissão e à sua ligação com o céu e o inferno. Antes de mais nada, ele era um artesão e um técnico que conhecia o segredo da transformação do metais, bronze e ferro. Fabricava instrumentos de utilidade doméstica, religiosa e militar: lanças, espadas, machados, facas, setas, martelos, ídolos, amuletos, imagens dos gênios ancestrais.

 

Tinha fama de mago e feiticeiro. Fora colaborador dos deuses na criação do mundo e arquiteto dos seres. Chamavam-no “senhor do fogo”, porque transformava matéria, endurecia o metal, criava formas novas em sua forja. Fazia até instrumentos para os deuses: o rio era obra sua. O forno químico do mundo foi preparado pelo ferreiro. Desse forno saiu o universo com tudo o que existe.

 

Seus títulos de glória causavam inveja até nos deuses: fundador de cidades, herói protetor da aldeia, primeiro homem das classes nobres. Ensinou como abater os animais com instrumentos de ferro. Trouxe do céu o fogo e as sementes. Era também médico que curava as doenças e preservava do mau olhado.

 

Chamavam-no de mágico satânico, benfazejo e maléfico, pois usava de sua técnica a favor e contra homens e deuses. Ninguém mais categorizado para ser chefe das aldeias, representantes das comunidades, ministros nas cortes, construtor de cidades.

 

Era considerado cantor, profeta e adivinho. Enquanto trabalhava, entoa hinos, profere palavras mágicas e cria obras admiráveis. É poeta, dançarino, taumaturgo.

 

Devido a essas qualidades todas, não era um homem comum. Vivia retirado da sociedade, nas cavernas, no centro da terra, na fornalha dos vulcões. Vulcano é o nome de um deles. O próprio nome já indica sua profissão e moradia.

 

Carregava no corpo sinais típicos e visíveis. O ferreiro é defeituoso, coxo, estropiado, caolho, maneta, anão ou de corpo gigantesco. Tem às vezes forma de demônio. As marcas que leva no corpo são castigos dos deuses, por causa de seus poderes mágicos. Os deuses sentiam-se enciumados pela usurpação dos poderes divinos e pelo roubo dos segredos do céu.

 

Apesar disso e por causa disso, seu status é fora do comum. Devido à sua ligação com mundo além, céu e inferno, ele goza de imenso prestígio. É chefe, é nobre, é semideus e até deus. Os deuses da tempestade são ferreiros que golpeiam com seus martelos, provocando o ruído dos trovões.

 

Mas todo mundo sente pavor de tanto poder. Em razão de tantos títulos, ele é também odiado, desprezado, marginalizado, maldito, intocável, impuro, paria. Não pode casar-se com moças da tribo, pois traz azar para a comunidade”(Nota 5)

 

b) Abel: vento, imagem das frustrações humanas

Retomando o que dissemos nas páginas anteriores, Abel significa vento, sopro, hálito, respiro, vapor, névoa, fumaça, vão, fútil, inútil, vaidade, fugaz, coisa caduca, que flui rapidamente, que desaparece, frustração, ilusão, mentira, aborto, desengano, luto, lamento, choro. Vários textos bíblicos testemunham o uso de hêbel com os significados acima mencionados, tais como: Is 49,4; Sl 31, 7; Ecl 4, 4.8.16; 5, 6; 6,2.11.

 

c) Nas duas imagens a linguagem dos símbolos

Diante dessas informações sobre o significado dos nomes Caim e Abel, resta-nos perguntar pelo o objetivo da comunidade que escreveu a história desses dois personagens? Em que ela estava pensando? Valeu a pena ter matado Abel? Qual Abel foi assassinado?

 

O ferreiro, como vimos acima, catalisava na sua profissão o bem e o mal, o ódio e a violência. O mito bíblico enfocou mais o lado moral e ético que o nome Caim evoca: vingança, ciúme, crime. Também preservou o seu lado de construtor de cidade. Gn 4,17 diz: “Caim tornou-se construtor de cidade e deu à luz”... Se considerarmos essa informação importante do texto, bem como a profissão de ferreiro, podemos interpretar o drama de Abel e Caim como briga entre a cidade e o campo. As cidades, naquela começavam a despontar no cenário e a conseqüência disso era exploração dos camponeses. Mas, por ora, deixemos de lado essa rica é válida leitura do mito/conto de Caim e Abel.

 

O ferreiro, com o golpe do martelo na bigorna, fabrica vários tipos de instrumentos. Caim, o ferreiro, golpeia a cabeça do seu irmão Abel, o pobre e insignificante, e o mata. (Nota 6 ) Caim precisa sempre de um Abel para matar, e, com o sangue dos Abeis, manter-se no poder. O sangue derramado perpetua a violência entre os povos.

 

O pobre, sempre indefeso, vive às margens da sociedade, esperando a morte chegar. Ele, qual outro Abel, é luto, dor , sofrimento e desesperança. E se fosse esse o Abel assassinado por Caim, ele merece o castigo. Mas, o Abel das frustrações e desilusões do humano mal sucedido em seus empreendimentos, Caim fez bem em ter matado. E não merece castigo. Assim, um Abel é fruto de um Caim. E Caim é conseqüência de um Abel.

 

8 – O que podemos concluir sobre o estudo de Abel e Caim?

 

1. O conto sobre Abel e Caim explica teologicamente como o mal estava já nas origens da humanidade. O que estamos vivendo tem suas origens no mundo antigo. O mal poderá continuar no meio de nós, se nós, por livre decisão continuarmos a perpetuá-lo. E nossa história continuará indelevelmente condicionada à nossa condição de pecador.

 

2. Gn 4,1-16 ilumina a temática da justiça quando propõe a saída da condição de violência originária como superação da injustiça.

 

3. O animal acuado é um símbolo bestial da violência que mora dentro de cada um de nós. Caim foi dominado por esse animal. Ele entrou em ação. E Caim ficou submetido ao impulso bestial da violência. Caim ficou atrelado ao desejo de vida plena que inclui a morte do próprio irmão e, até mesmo, de Deus. Qual é a solução para essa para essa atitude não querida por Deus? O próprio livro do Gênesis responde:

 

a) Quem matar Caim será vingado 7 vezes.

 

b) E Lamec será vingado 77 vezes (70x7) o que significa um freio total à autodestruição (Gn 4, 24).

 

c) O dilúvio (Gn 6, 5-9,17) será a recriação da humanidade. Após o dilúvio, o animal, menos o seu sangue, poderá ser comido pelo ser humano. Sangue é vida. E a vida do outro não poderá jamais ser comida.

 

d) Após o dilúvio, o ser humano não poderá derramar o sangue de seu irmão (Gn 9,6), senão ele mesmo morrerá. Isto é também um freio à violência. A lei do Talião é o remédio último para frear a violência.

 

e) Ser imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26) significa dominar o animal que está dentro de cada um de nós. E dominar sem violência.

4. O verdadeiro ser humano para Deus é a integração entre os irmãos Abel e Caim, o ser humano segundo o coração de Deus. Deus, rei-pastor (Abel) governa o mundo em harmonia com a terra (Caim) sem usar a força da violência, mas a da Palavra.

 

 

Artigo publicado na revista Horizontes, do Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Hrizonte.

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Nota 1 - Seguiremos o pensamento síntese sobre o tema analisado e apresentado por Pietro Bovati, in: Justicia e injusticia en el Antiguo Testamento, apostila, PIB: Roma, 1994, p. 13-27.

Nota 2 - Cf. René Gerard, A violência e o sagrado, Unesp/Paz e Terra: São Paulo, 1990, p. 333.

Nota 3 - Utilizaremos o método da análise retórica.

Nota 4 - A tradução da LXX e a Vulgata consideram Deus.

Nota 5 - Cf. Rômulo Cândido de Souza, Palavra Parábola. Uma aventura no mundo da linguagem, Aparecida: Editora Santuário, 1990, p. 16-17.

Nota 6 - Cf. Rômulo Cândido de Souza, Palavra Parábola. Uma aventura no mundo da linguagem, Aparecida: Editora Santuário, 1990, p. 18.