19º DOMINGO DO TEMPO COMUM

19º DOMINGO DO TEMPO COMUM (7 de agosto)

Chamados no mar de injustiças e contradições humanas

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

 

I. INTRODUÇÃO GERAL

Estamos iniciando o mês de agosto. A tradição popular identifica o mês de agosto como mês do desgosto, do azar, do cachorro doido, dos ventos, etc. Neste mês, a igreja propõe para as comunidades a reflexão em torno ao tema da vocação: Cada domingo é dedicado, respectivamente, a uma delas: sacerdócio, pai, religiosa e leiga.

Vocação vem do latim: vocare – chamar. Muitos, pensando na profissão, dizem que não têm vocação para isso ou aquilo. Outros pensam que somente padres e religiosos (as) é que têm vocação. As duas afirmativas procedem. Faremos bem algo quando temos vocação para tal. Muitos até exercem uma profissão sem o devido sacerdócio, isto é, a dedicação. Imagine se um médico não está disponível quando um doente precisar dele. Vocação tem muito a ver com a intensidade e paixão no fazer e consequente felicidade. Quando o teólogo alemão completou bodas de vida sacerdotal, perguntaram-lhe pelo segredo da felicidade, e ele respondeu sabiamente: “Se você quer ser feliz por um dia: vá pescar; se quer ser feliz por um mês: case-se; se quer ser feliz por toda a vida: faça tudo com intensidade a cada minuto de sua vida”.

Neste primeiro domingo de agosto, dediquemo-nos a refletir sobre a vocação sacerdotal. No último dia 4, celebramos o patrono dos padres, São João Maria Vianey, homem dedicado ao sacerdócio, que, no seu tempo, soube responder com eficácia ao chamado de Deus. Nas leituras de hoje, veremos que Deus chama o profeta Elias; Jesus convoca Pedro para caminhar sobre as águas do mar; Paulo fala, com tristeza, da não correspondência de seus compatriotas, os israelitas, ao chamado de Deus.          

 

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

    1. I leitura (1 Reis 19,9ª.11-13a): Deus chama na brisa leve e convoca o profeta para uma missão conflituosa. Elias, o grande profeta do povo judeu, é relembrado anualmente no jantar da ceia pascal. Os judeus deixam à mesa uma cadeira vazia para Elias e o recebem nas casas com uma taça de vinho. O livro de Malaquias atesta a promessa divina da volta de Elias, antes do Dia do Senhor, de modo que ele possa fazer voltar o coração dos pais para os filhos (Ml 3,23-24). Não por menos, muitos cristãos acreditam que Jesus, o Messias, morreu invocando Elias (Mt 27,47.49). A trajetória profética de Elias foi marcada, sobretudo, pela saída do palácio do rei. Com ele, se o rei precisasse ouvir o conselho de um profeta, teria que ir aonde povo estava, pois ali se encontrava o profeta. Elias multiplicou a farinha e o óleo de uma pobre viúva (1 Rs 17, 7-16); ressuscitou o filho de outra, em Serepta (1 Rs 17, 17-24); provocou seca; fez descer fogo do céu; predisse a chegada da chuva; degolou 450 profetas de Baal, após o sacrifício no monte Carmelo (1Rs 18). Por tudo isso, Elias foi chamado de “homem de Deus” pelas pobres viúvas, mas, de assassino, pela rainha de Israel, Jezabel. Elias restaurou, em Israel, a fé em Javé, o Deus libertador.

Tendo realizado todos esses feitos e vendo a perseguição bater às suas portas, Elias teve medo e fugiu para o monte Sinai. Qual outro Moisés que, após matar o soldado egípcio que matara o seu irmão de sangue, defendendo os direitos de seu povo, fugiu da casa do Faraó, onde teria sido criado (Ex 2,11-3,22). Chegando ao monte Sinai, após quarenta dias e quarenta noites, fato simbólico que relembra a peregrinação do povo no deserto, Elias entra numa gruta. Deus lhe pede que saia e revela-se para ele em uma brisa suave (v.12). Neste mesmo lugar, Deus havia se manifestado por meio de trovões, luzes, terremotos. Com Elias é diferente. Deus fala por meio de uma brisa suave. Muitos interpretam esse fato vocacional na vida de Elias como um chamado à serenidade, própria de Deus e do seu escolhido. Mesmo que essa afirmativa seja verdadeira, não é bem assim a missão dada a Elias, que os versículos posteriores retratam: Elias teria que descer do monte e retomar o caminho, ungir Hazael como rei de Aram; Jeú, rei de Israel e Eliseu, profeta em seu lugar. E o que é mais drástico: todos os três deveriam provocar uma matança geral, resguardando sete mil homens fiéis, que não aderiram a Baal (v. 18).

A vocação de Elias é marcada por: contato próximo de Deus; falar em nome de Deus; medo ao assumir a missão e suas consequências inevitáveis; denunciar as injustiças sociais; defender os pobres; purificar a religião por  um estado que governa em nome de Deus e, se preciso for, matar os opositores de Javé. Aos nossos ouvidos pode soar estranho esse último ponto de sua vocação. Não podemos simplesmente, de forma anacrônica, justificar essas suas atitudes em nossos dias. Assim viveu Israel, nos  primórdios de sua fé. A vocação sacerdotal, sobre a qual estamos refletindo, neste domingo, tem muito de Elias. Deus o chama ao sacerdócio, isto é, ao serviço de ser ‘ponte’ entre o povo de Israel e Deus. Elias tem medo, pois a sua missão não é fácil. O idílico do chamado na brisa leve vai muito além, no enfretamento aos desafios hodiernos de uma religião comprometida com a justiça social. O sacerdote, se não for, como Elias, um homem de oração e de serviço, não poderá corresponder ao chamado de Deus.

                

    2. Evangelho (Mt 14,22-33): segura nas mãos e vai... na fé

O evangelho de hoje, dando continuidade ao do domingo anterior, o da multiplicação dos pães, mostra Jesus subindo ao monte para rezar. No fim da tarde, ele volta caminhando sobre o mar. Os discípulos, com medo, pensam que se tratava de um fantasma. Jesus se apresenta e os convoca a ter fé. Pedro dialoga com ele e sai caminhando sobre o mar. Quando duvida, começa a se afogar, mas Jesus o acolhe pela mão. Os discípulos manifestam a fé em Jesus como Filho de Deus. Esse é o conteúdo do evangelho que ouvimos. Em que ele ilumina o tema de nossa reflexão, a vocação sacerdotal? Vejamos. Jesus caminha firme sobre o mar. Ele poderia realizar tal proeza, pois era o Filho de Deus. O mar é o lugar do medo, do não dominado, do mal, do não conhecimento humano, de onde vinha o leviatã, o demônio. O medo que vem do mar é contrastado, no evangelho, como o medo dos discípulos. Para o mar, Jesus havia enviado uma legião de porcos – animais impuros como o mar -, e possuídos de demônios, assim como a legião de romanos (Mt 8,28-34). Pedro, a pedra, representa aquele que tem pouca fé e vacila no caminho. A mão de Deus, Jesus, o segura nas dificuldades e amaina o vento forte que vem do mar. A barca é o lugar seguro, apesar do mar violento e perigoso. Aqui vale lembrar a música: “Se as águas do mar da vida quiserem te afundar, segura nas mãos de Deus, e vai”...

O sacerdote, assim como todo cristão, é chamado a enfrentar as dificuldades do ‘mar da vida’, a ter fé, apesar do medo. Caminhar sempre, professar a sua fé em Jesus, o Filho de Deus. E, assim como Jesus, buscar força na oração nos ‘montes’ da vida. Para o povo da Bíblia, o monte era o lugar da proximidade com Deus. O padre, fraco na fé, como Pedro, humano como outro humano qualquer, celebra ‘in persona Christi’ os sacramentos. Testemunhando, no altar e na vida, a paixão, morte e ressurreição de Jesus, o Filho de Deus.    

 

  1. II leitura (Rm 9, 1-5): quem nos separará do amor de Deus

Paulo, que de perseguidor dos cristãos, por causa da vocação – chamado de Deus que lhe aparece na pessoa do ressuscitado -, transformou-se em um homem de muita fé, contrário a Pedro do evangelho de hoje. A preocupação de Paulo, sobretudo no trecho que hoje ouvimos da Carta aos romanos, reside no fato de os seus parentes na carne, os israelitas, não demonstrarem fé em Cristo, descendente dos patriarcas e Deus bendito pelos séculos. Paulo tem consciência de que Deus escolhe Israel como seu povo e com ele fez uma aliança eterna. Paulo tem esperança de que os seus compatriotas iriam compreender o mistério da revelação de Deus em Jesus. Os judeus tinham Paulo como inimigo e traidor deles (At 21,28). Paulo manifesta sua fé na divindade de Jesus. Essa questão percorreria longos séculos de discussão entre os cristãos, até o consenso final, no Concílio de Calcedônia, em 451, em que a igreja criou o dogma de fé na Trindade. Essa decisão, no entanto, provocou o surgimento de outra religião, o islamismo, que não aceitou a divindade de Jesus (Cf. FARIA, Jacir de Freitas, Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos – Poder e heresias! 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p.147).

Como Paulo, o sacerdote e os cristãos são chamados a testemunhar a fé em Cristo, Deus bendito pelos séculos.     

 

 

III.  PISTAS PARA REFLEXÃO

  1. Refletir e celebrar com a comunidade o valor do sacerdote, sua dimensão de serviço profético e animação da fé.
  2. Não se esquecer de comentar os vários contratestemunhos de padres. Fazer uma leitura positiva, como momento de graça e de renovação da vocação sacerdotal. Pedir a oração da comunidade para o clero.
  3. Perguntar como Deus se nos revela hoje, chamando-nos para uma missão no mundo marcado pelo consumismo e pela alienação. Perguntar pela vocação de cada um e o medo que nos impossibilita de realizá-la.